sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

ALUNOS COM E SEM DEFICIÊNCIA DIVIDEM AS SALAS DE AULA DE COLÉGIO ESTADUAL EM NITERÓI E, JUNTOS, VIRAM ATÉ CINEASTAS

Ao cruzar o estreito portão de ferro na entrada do Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho (Iepic), em Niterói, e se dirigir ao bloco localizado à esquerda do pátio, uma surpresa. Sentado nos degraus da escada que liga o primeiro e o segundo andares, um grupo de alunos confraterniza animadamente. Mas alguns só fazem gestos, outros falam com a boca e com as mãos, e há ainda quem prefira usar apenas os lábios mesmo.

Entre eles, há vários surdos, um cego e uma autista, mas é difícil reconhecer quem é quem. Nos "idiomas" utilizados, há uma mistura de nossas duas línguas oficiais: o português e a Língua Brasileira de Sinais (Libras). No Iepic é assim: a convivência entre os alunos com e sem deficiência é plena. Eles dividem salas, refeitórios, pátios e quadras. Até mesmo o bullying, que assola todas as escolas sem distinções sociais, por lá não tem os deficientes como vítimas preferenciais.



Com 175 anos, o colégio, que faz parte da rede estadual e é a mais antiga escola de formação de professores da América Latina, mostra que a idade não pesa na hora de inovar. Mesmo que a ideia de uma instituição inclusiva tenha vindo totalmente por acaso: ninguém planejou a entrada de jovens deficientes que ali encontraram espaço.

Durante as aulas, há intérpretes que fazem a tradução dos conteúdos dados, mas, caso algum deles não possa comparecer, os próprios alunos assumem a função.

- Aqui, a troca é completa. Os surdos ensinam Libras aos ouvintes. Eles são verdadeiramente bilíngues, é um interesse que parte deles. Se um intérprete faltar, um aluno assume, não é problema - conta a professora Ruth Mariani.

Já passa do meio-dia, e os estudantes sentados na escada entre dois andares estão quietos e observam atentos as explicações de Ruth. Atrás dela, uma parede bege servirá, em instantes, de telão improvisado para o cineclube da escola, montado às sextas-feiras, sempre no mesmo lugar. Do alto da escada, um projetor e caixas de som estão a postos, e um pano azul tenta tapar o sol que entra pela janela. A proposta é convidar quem passe por ali a dar uma espiada.

Naquela tarde, o filme não era nenhum pipocão americano. "Iepic - Uma história de inclusão" foi produzido pelos próprios alunos, depois de receberem a oficina de videointeratividade do projeto Cinema Para Todos, uma parceria das secretarias estaduais de Cultura e Educação do Rio. No curso, além de noções de fotografia, roteiro e direção, os alunos aprenderam a tirar o melhor de suas câmeras fotográficas e celulares.

Sem computadores novos ou ilhas de edição ideais, e com câmeras e microfones amadores, eles se dividiram pelas etapas do processo de acordo com suas habilidades, de desenhistas, como Deivid Roberto, a editores. Tudo na base da vontade. Os menos tímidos assumiram a atuação, e os outros se dividiram pelo trabalho atrás das câmeras. Como o filme é bilíngue e a maioria dos atores é surda, foi preciso dublar as imagens. O vozeirão da turma, Carlos André Pureza, foi o escolhido, apesar de ser cego. Dublador cego? Ele está acostumado à pergunta.

- Todo mundo vê uma limitação, mas, para mim, ela não existe. Era o meu sonho. Quando a Ruth me chamou, aceitei porque não podia perder a oportunidade. Antes, parecia difícil, mas na hora foi tranquilo - conta Carlos.

Para cumprir a tarefa, ele contou com a ajuda de sua colega Mayara Nascimento. Ela descrevia para o dublador as cenas, indicando inclusive quando o tom de voz deveria mudar, por causa das situações de perigo ou felicidade. Na hora de gravar e mixar, ele ainda utilizou um programa para cegos desenvolvido pela UFRJ, no qual as instruções são dadas por sons.

Tanta cumplicidade entre estudantes com e sem deficiência impressionou a diretora, Renata Rodrigues de Azevedo, que assumiu o comando da escola no início do ano. Além da responsabilidade de assumir um colégio com dois mil alunos, ela admite que tudo foi surpresa. Até mesmo para quem estudou a vida toda no instituto, como ela.

Em um passeio pelo pátio, é possível assistir a uma conversa entre um cego e um surdo. Como? O diálogo é todo através do tato. Andressa Souza constrói nas mãos de Carlos os sinais da Libras. A "pegação" pode até confundir os desavisados, mas não é nada de namoro. Mesmo com a carência de infraestrutura, no Iepic se segue em frente. De mãos dadas.

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Fonte: Globo online - Leonardo Cazes

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